quinta-feira, junho 29, 2006


Hoje quero deixar uma coisa aqui. Quero dizer, deixar um dito. Dito aqui. Aqui, na rede. Nesta porção de vazios cercados por traços. Neste liame de traços cercando vazios.
Só que não me decido. Deixo a história do um, que começa a voar e logo se agarra nos fios, ou a do outro, enrolado em si, que parece voar, mas que só atravessa buracos?
Pensando bem, melhor dormir. Quem sabe sonhe inseto grande, um bem maior que a teia. Quem sabe sonhe um peixe, um que da pesca escape.

quarta-feira, junho 28, 2006

(Brasil Três, Gana Zero)

Ontem, às duas e quinze – com uma tigela de arroz escuro cozido em fogo brando por quarenta e cinco minutos – fui à varanda. Almocei em pé, ouvindo estrondos, gritos, gritinhos, buzinas. Mastiguei o mais que pude. Os gerânios, recém chegados e ainda sem flor, diziam: a América venceu a África, mais uma vez.

domingo, junho 25, 2006

Quisera dizer com todas as letras. Com a, com bê, com cê, com alfas, ômegas e além. Pudesse, abriria a comporta dos ditos. Inundaria a cidade com enxurrada de não-ditos. Todavia, faltam-me as forças.
Tentarei os números. O um, por primeiro, seguido do dois e, em terceiro, o três. Pronto. No quarto o oito invade, deita-se, insinua o infinito. Outra canseira.
Contarei uma estória, então. Sem começo, sem enredo e sem moral. O volume, porém, será ricamente ilustrado. Às margens de cada página haverá molduras. Nelas os dragões, serpentes, pássaros, árvores com frutos vermelhos e estandartes poderão, enfim, repousar em silêncio.

sexta-feira, junho 23, 2006

(Brasil Quatro, Japão Um.)
Confesso. Quando aquele japonês conseguiu a façanha, descobri: eu estava do lado dele. Chorei. Quando o brasileiro, aquele que olha sempre para todos os lados, e que parece saltar feito coisa – quando aquela coisa rebelde e redonda chega aos seus pés –, também conseguiu, por igual chorei. Fiquei do lado dele, grato aos urros e apitos – rumores de alívio, de muito ar saindo das gentes.
Confesso. Não gosto de futebol. Nem me lembrava o motivo. Depois voltou esta onda, esta, de todos andarem lado a lado, para todos os lados e para lados outros, atentos a esses meninos fazendo aquilo. E veio a lembrança, o motivo. Neste tempo tem o jogo. O jogo é na hora do jogo. A hora é a de não haver mais nada. Nada além dos homens fazendo aquilo: jogar o jogo. E os outros, os que não jogam, ficam lá naquela hora. A hora de olhar o jogo.É um assombro. O mundo sai todo do jeito. O dia se desgoverna. As mãos ficam sem rumos.
Em tais horas, choro. É como estar sendo o pai, de filho na hora do parto. É como estar sendo um vivo, diante de um outro que morre.

quarta-feira, junho 21, 2006

Vivemos como não houvesse céu, firmamento, oceanos, estrelas, mares conhecidos, matéria. Como fosse possível olvidar o sono, profundezas, partos, passagens, transmutações, rumos – vivemos.
Disseram-nos dos horrores do trabalho e dos horrores outros: pragas. Espelhados, vidramos nos dias de pessoas tantas, nas labutas, nos jogos, crentes nós todos em azares de não sermos capazes de vislumbrar, vibrar livres, ausentes de fazeres árduos, dos dias que se avolumam. Em escravizações, escravisagens, estreitezas, acorrentamentos: ao bem fazer, ao tornar-se o querer dos outros, desconhecidos, passados, temerosos. Pouco ouvimos a música do mundo.
Desventura. Vivemos como houvesse O Céu, não firmamento, estrelas.

terça-feira, junho 20, 2006

O cão

No amanhecer ele veio.
Veio negro, brilhoso, do destino. Não do mundo falado, veio cego, breve, no contorno exato. Intento verso para contá-lo, como se assim dominasse o cosmos, donde o estupor de sua imagem persiste.
À beira de novo embarque, desejo encontrá-lo, senhorio de minha alma, espectro meu inteiro. Permito-me suplicar. Venha-me em socorro, venha-me belo, venha ter outra vez em meu sono. Venha saltar sobre o muro, n’outra manhã de relógios.
LEITURA:

Aldo Busi, em Vida padrão de um vendedor provisório de collant.

Não se pode ir ao encontro de alguém que mora em você.

&

...não se pode jamais fugir de uma gaiola ilimitada, se é prisioneiro para sempre, apenas o confronto com as grades de um outro o libera das suas.

segunda-feira, junho 19, 2006

O tempo invade o espaço. Dá-se corda, espreguiça, estica os ponteiros, estica, estaca, estica, estaca, estica, estaca. Fala nada. O espaço toma rumo de infinito e lá solfeja, lá, lá, lá, em si, sem dó.
*
O espaço invade o tempo. Esconde-se na semente, faz hora no broto, faz pouco na muda, dura em tronco e em solo se arvora. Fala nada. O tempo toma ares de infinito, segue em si, sem ré.

domingo, junho 18, 2006



Quisera escrever simplesmente, andar sobre pernas, abraçar com braços, dormir de noite em cansaço – pedi.
Simples! – disse a mente –, mente.

quinta-feira, junho 15, 2006

Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro.(Machado de Assis)


Um menino me pede, solene, notícias do futuro. Quer saber de acerto e erro, quer tirar de si o tremor da dúvida, quer meus óculos para enxergar o mapa de seu destino.
Com alma destra, digo: amanhã é mentira; o futuro é o que não chega; a da escolha é esta hora de sempre, invisível; as respostas antecedem as perguntas; o sabido é barquinho à deriva no oceano do ignorado.
Com a sinistra, a outra alma, digo: corre ao sonho, segue o imaginado, inventa um seu coração.
(ao Pajé)

quarta-feira, junho 14, 2006

(Brasil Um, Croácia Zero)

ontem, no jogo, chorei
é sempre jogo o jogo
e aí não sei não chorar

quando é guerra sem disfarce
choro não, melhor cantar

segunda-feira, junho 12, 2006

(dos guardados, ora dedicado: a Andrea, Sidney e Marcos)



Vivo no eterno. Deidades inaudíveis faíscam. Pãezinhos são colhidos, amassados, perfumados pela bruma, antes de pousarem à margem dos cestos. Dentro deles, dançam e somem.
Meu amado recosta-se na poltrona. Minh’amada flutua sobre o tapete vermelho. As malas estão abertas. Os trajes encontram-se em festa, zunindo.
Doces irmãos louvam seus deuses. Espero por eles, polindo as rochas. Virão. Sua carruagem aproxima-se. Haverá somente um minuto. Devo ocultar o livro.
O cravo, o violino, os sinos! Ponham-se entre as árvores para recebê-los — imploro em silêncio. Fartas, febres e friagens, revoam. Estou no jardim. Vou, suspenso pelos cabos de força, chegar à porta.

domingo, junho 11, 2006

Exercício-diário.


Do vôo noturno desembarco. É – dizem – começo da tarde. Fusos misteriosos ocultaram-me no além. Quase perco a farra de hoje. Disseram-me à janela da existência de uma batalha: a metrópole tentará outra vez derrotar os pretos. Sou por Angola. Porém, não dedicarei mais atenção a tal peleja. Beberei meu café e depois vou à coleta.
&
Deu-se a tarde. Cozinhei legumes - trazidos lá dos campos, sei lá por quem, guardados no gelo, por sei lá quem, conquistados com mãos minhas, trêmulas, porém capazes de repetir à maquininha os quatro números: o código secreto. Depois comi e à falta do licor, bebi outro café bem forte. Li em voz alta, uma das histórias de Leopoldo Lugones, em As forças estranhas, apresentando a minha filha a palavra deste camarada que ousou descrever, pela voz de uma testemunha, o fim de Gomorra. Sob esta chuva de cobre, anoiteceu.
Depois, no cinema: falas e imagens sobre o amor em tempos de intolerância. Romeu e Julieta não morreram cedo desta vez. Apenas um beijo, de Ken Loach, acaba em beijo.
&
Eis-me aqui, no inevitável, no intransponível, no tempo obtuso: é domingo e é noite. A bem dizer sinto estarmos todos: os gatos, o rato, o outro rato, as princesas, os menestréis, os andarilhos em repouso sob as tendas e os outros muitos. As crianças acolhem-se entre as pernas distendidas. Os pássaros fizeram-se invisíveis. Incansáveis, os violinos sugerem um minueto. Já no sonho digo: com olhos cerrados, dancemos juntos.

sábado, junho 10, 2006

A flor vermelha
toda a sua alegria
e vermelha assim
chuveirando em jatos sólidos
multidirigindo rubros beijos
aos verdes
azuis
multicolores
esperta tem a certeza
de que vermelhará também
em outras alegrias
além
(versos de Anamaria Leme)

sexta-feira, junho 09, 2006

AMADOR.


Com o espelho trincado,
tece a imagem.
Pontua, verso a verso,
retalho a retalho.

Seus olhos colhem
cores e pedrinhas.

II

Afaga as pedrinhas,
fio no dedo, outro dedo
pontas ao infinito.

III

Das pedras vermelhas, colar
Dos dedos, presente.

Na pele, amada, reluz.

IV

Vive segundos e eras,
transpira seus sonhos
todos num só.

V

Nave. Cinza e gelo.
Caminha nas nuvens -
trilha no ar.

VI

Une os dedos e
Fecha os olhos e
Sabe as nuvens e

Números e
Ouvidos e
Aço e
Voa


VII

Na casa, os sininhos,
vibram as horas

Ele noite a dentro
vela os cristais.

VIII

Por mais que procure outro tom,
grave, escala a espiral.

Sob império:
sonha.

IX

Na parede de vidro,
sol labareda.

Soletra.

Na janela de pedra,
calor cacto.

X

Ameixa entre os dentes,
úmido o olho.

Ama o tempo,
ama os elementos,
ama tanto a cegar-se.

Os dedos já sangram,
as paredes dissolvem,
sinos tocam furacão.

terça-feira, junho 06, 2006


Manhã de Maio
Versos de Kátia Cercasin:

Quisera eu ter essa destreza com as palavras.
De tanto fazer atas, esqueci como se escreve.
De tanto correr, esqueci como se coloca
aqueles tais alçapões
nos cantos, esquinas e árvores
para segurar os versos,
que suave e constantemente passeiam pelos dias e noites.
LEITURA:


Juan José Saeer, em A Pesquisa:

...todo relato é verídico e, caso se pretenda extrair dele algum sentido, basta ter em conta que, para obter a forma que lhe é própria, às vezes lhe é necessário produzir, graças a sua propriedades elásticas, certa compreensão, alguns deslocamentos e não poucos retoques na iconografia.

segunda-feira, junho 05, 2006

Há um gigante derrotado por uma criança, nas Escrituras. O gigante e a criança existem. E lutam. E todos os dias a criança ganha. A criança usa uma agulha. E fura o gigante. E o monstro explode.
Depois ele continua lá, imensamente, na hora do começo da história.
Ele voa.
Agora é um antigamente. Nele eu. Procurando a desculpa de não entender a maneira de perfurar o gigante. Falo sobre ele, mas não o enxergo. De verdade mesmo, a sombra eu vejo. Pelo menos é um pedaço, um quase, um pertinho de alcançá-lo antes do escurecer-se dele inteiro.
Desobediência
CITAÇÃO
Machado de Assis, no Quincas Borba:

Quem conhece o solo e o subsolo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva, são ricos em idéias ou de sentimentos, quando nós também o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as coisas compõem um dos mais interessantes fenômenos da terra. A expressão: “Conversar com os seus botões”, parecendo simples metáfora, é frase de sentido real e direto. Os botões operam sincronicamente conosco; formam uma espécie de senado, cômodo e barato, que vota sempre em nossas moções.



domingo, junho 04, 2006

PALAVRA

Encontro-me. Em um livro, múltiplo, em uma reconstrução, refletido em ordens, discursos: espelho, espelho, estilhaço.
Encontro-me. Desbravador, pois estive recôndito, envolto, a embotar-me.
Espero-me: sem nenhuma vergonha, no próximo capítulo.




dá-se aos ventos a paineira
no outono e grávida de macios
a gigante teima em flores

Eis.

É escuro, é tarde do dia. Planejo um grito. Desisto. Desejo contar história explicada. As personagens, todavia, ocultam-se.

Assim é melhor – penso. Viessem à tona, haveriam de estar amedrontadas. O cenário é medonho. É mundo de homens aflitos: monstros com muitos umbigos.

Inventarei outro mundo.

Casas e árvores, selvas molhadas e desertos bem secos, ruas, floriculturas, fábricas de chapéus, mesas redondas, varandas, portos e tapeçarias.

Um mundo preciso.

Precioso é melhor – penso. Mundo de falar aos não-gritos.