domingo, dezembro 17, 2006

...na orelha fria: segredos de incinerador...

Em Curitiba, em dezembro, em tempo.

Meu amor,

Recolho-me na tarde, domingo, depois de andar feito um porco, olhos ao chão, certeza do corte. Perdoa-me a forma: espelho, espelho, sonho meu. Quisera poder um conto, ou qualquer outro poder de encantamento, porém nada disso se apresenta. Recolho-me e estou afoito. Livrar-me de uns fardos é o intento. Rimo. Não resisto à força da palavra. Quando ela quer desenhar o vivido, dando-lhe som exato, ponho a dor no saco, aquele mesmo onde outrora um outro enfiou a viola. Brinco. Até as orelhas d’alma estico: um sorriso.
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Dado o parágrafo, fui ao cinema. Lá uma história de reconciliação. Um homem encontra em si o menino, refaz seus cálculos, ressuscita. O amor o inspira e recompensa. Quando subo a ladeira, na volta para casa, percebo: poderia correr. Não como correria quando menino. Era fraco então. Cismava no passo curto, com o peito encolhido, querendo ocultar uns tantos ossos expostos e fora do lugar. Mas poderia hoje correr como estivesse em futuro. Pois quando velhinho, decerto, correrei. Fiz as pazes com o tempo. Ele, desde então, passa lento e me ensina levezas.
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Dado o outro, pergunto-me: o que mesmo era o de dizer?
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Na pergunta cismei por longos dois dias. Motivos de desolação – aqueles do primeiro impulso – escorreram todos: nos suores sobre a máquina de correr; nos suores sobre os tapetes, pois há tempo e arrasto os móveis pela casa, mudando tudo de lugar, construindo cenário novo, no fundo sempre o mesmo; nos banhos depois de todos os esforços, escolhidos, prazenteiros. Motivos para seguir – aqueles de todos os dias: o amor e a busca do amor – persistem. E sobre tanto vou meditar outro tanto e, logo mais, abrir um parágrafo. Antes conste: vai ao fim a tarde de terça.
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O amor é o tudo, quase. Expressá-lo é o desejo, o um. Não há qualquer vento. O dois é difícil. O movimento estanca. Tomado pelo ruído feito pelos muitos ruídos, o pensamento atinge o ponto. Ferve a cidade, ferve o corpo. Sairei em busca de alguma brisa. É sexta.
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É sábado já. Aos gritos dos bêbados da noite sucederam os gritos das crianças, embriagadas de sonhos, tomando a manhã. Esta não-confissão se prolonga. A Palavra impera: produzindo silêncios, soprando palavras, aquelas nada-dizentes. Pergunto-me como seria se tivesse aquele poder, o da música. Nela – pressinto – a emoção, o conhecimento, o ser, livres das amarras da linguagem-fala-sentido, talvez pudessem apresentar-se, em plenitude. Talvez não. O certo é que vou ao comércio, impregnar-me dos perfumes da rua, dos objetos infindáveis disponíveis no grande mercado. Visto-me a caráter: calças curtas, sapatos de pano, óculos bifocais. Carrego, junto ao peito, ocultando o coração, minhas credenciais: cartões de plástico, reluzentes e magnéticos. Com eles atrairei os bons olhos, os bons tratos, os bons dias.
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Encontrei pedintes. Pedi. Quero este, exatamente este. Disse: agora não. Disse: agora, embrulha. Deixei lá os pedintes. Trouxe para cá o embrulho. Quando conto a façanha, já está tudo desembrulhado. Até a nota, branca, limpa, corretamente dobrada, está guardada em algum lugar. Pois há lugares aqui. Muitos. A casa é grande. Extremamente grande. Não consigo usá-la toda, senão aos pedaços. E os meus pedaços nela se espalham agora, neste exato momento em que tento, depois de cuidadosa leitura do dito até aqui, entender meus motivos, meus motes, meus impulsos, meu ego-eco-em-pandareco-viu-só (?) - pergunto-e-a-Palavra-ensina-e-ordena: existe!
Há um trecho visível de céu. Girando o pescoço, só um pouco, posso vê-lo. Nuvens brancas. Há muitas coisas no chão. Papéis, livros, cadernos, desenhos. Uma chuva está presa lá. Um mundo de histórias está preso aqui. Sobre tais acontecimentos nada mais resta a dizer. Vivo em trânsito, olhos ao nada, pés afundados no tudo-presente-nas-coisas-que-parecem-existir. O caminho é estreito. A dissolução é bem possível. Ou será melhor dizer: a dissolução é mal necessário? Nestas horas, durmo.
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Quando acordo, o mundo está lançando jatos de ar fervente. A casa continua com as pernas no chão, girando. Os papéis deixados para depois ameaçam decompor-se ante meus olhos. Está tudo embaçado. Em via de dúvidas: bebo água, troco uma lâmpada, mudo os discos de lugar, defronto-me com, defronto-me, afronto. Jogarei para fora – perguntando-me sempre sobre a existência de tal lugar mágico – coisas que dizem ser para guardar. De minha parte, já as guardei tempo demais. Outras guardarei por um novo sempre.
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Cruzei a semana, meu amor, embalado no desejo de dizer-lhe tudo. Veja só, quantas sentenças! E, veja também, nada disse. Agora encerro, encerro-me, sentindo-me livre como se, ao invés, tivesse dito.

daquele que ama desde e até