sábado, novembro 24, 2007

11 de setembro

Estou em Paris, trancado em sala de embarque, sala de acasos. As horas são tomadas por acordos e desacordos entre os aeronautas. Não verei a cidade, não verei o céu aqui. Espero recostado, diante da fila de gentes de todas as cores, falantes de idiomas vários, carregando seus volumes, seus trajes, seus óculos e seus papéis. O sono, sensação única, dissolve toda noção. A fome afasta a possibilidade de qualquer sentimento. Com os olhos parados, mastigo biscoitos doces, bebo água engarrafada em plástico, percebo um dente falso quase se perdendo. Faço uma prece: venha logo Lisboa, dá-me outra vez um chão.

12 de setembro, dia de aniversário.

Manhã. Rua. Prólogo.
Os homens vão ao trabalho em qualquer cidade. Vestem-se, aos costumes. Têm consigo as bolsas, os bolsos, alforjes. Tomam seus coches, carroças e autocarros. Vez por outra, atravessam oceanos dentro de gigantescas máquinas, com os olhos fechados. Sou um homem e chego a Lisboa. Desocupo-me: a ouvir o senhor sentado ao lado dizer, em um português, suas palavras. Cá escrevo as minhas, sob chuvisco, aniversariando, só e sem carência, desconhecedor de qualquer futuro. Ouço o grisalho elogiado quando à sua boa-forma: “faço os possíveis e, às vezes, os impossíveis”.
Sigo no prólogo. São doze para as dez. Sei já o indispensável. Há a cidade. Duas xícaras de café e uma garrafa de água estão a custar em torno de dois euros. Sou possuidor todo o necessário e muito mais do que ele. Sigo.

(tarde)

Na fome, e na dúvida, comi macarrão com legumes, preparado por indianos que, ao meu sotaque, trataram-me em espanhol. No exílio falam eles entre si naquele idioma, o deles. Sento-me no Largo do Picadeiro, na entrada da Travessa dos Teatros. Isto depois de percorrer muitos quilômetros sob a terra lisboeta, no Metro. O ruído do bonde, o elétrico, me interrompe. Estava a pensar, pois em Lisboa não haveria de estar pensando; estava a ouvir idiomas muitos, pois por aqui não haveria de estar ouvindo; estava a escrever trocadilhos, de olhos atentos, abertos demais; estava a querer deixar-me nalgum ponto oculto, tomado pelo espírito destas ruas plenas de movimentos de gentes muitas, terra de vozes graves, de falas sem gerúndio.

(noite)

Venho a Lisboa encontrar os migrantes – brasileiros há em toda parte. Somos um milhão, diz-me a nascida no sul de Minas; sou mineiro, diz o garçom; sou de Londrina, dissera-me antes n’A Brasileira, a mocinha que já fala o português dos de cá. Aos bocadinhos, comemoro meu aniversário. No Café da Praça, a som de Ponteio, a ouvir e a ver as crianças exiladas, cantarolo: quem me dera, quem me dera, agora, tivesse a viola pra cantar!

Nota:
A alegria, num qualquer dia, haverá de ser tomada por primeira entre as virtudes. Os estados de graça e o sono – maior entre eles – em um tempo além deste, inexato, tomarão ares de ares e vão dissolver qualquer dor.

13 de setembro

Mais velho acordo em alegria. A cidade move-se apressada sob os olhos trêmulos daquele eu que a vê.
Caminhada.
Recolho as imagens da cidade antiga. Estaco, afrontado, com as tantas câmeras apontando para as paredes descascadas. Estatelo diante dos olhos dos brancos voltados ao negro: brasileiro, monociclista, malabarista, pedinte. Ele insinua-se engraçado, em português-brasileiro inútil. Os americanos riem, arrotando cervejas na manhã. Conversamos por dois minutos e o menino, imprudente, conta-me: “há dois dias estou ilegal; aqui, sem falar inglês e sem telefone celular, você não é ninguém”. Recolhe os apetrechos e vai.
Minutos depois, ao acaso, encontro meu amigo inglês, da conversa de ontem à porta do cinema. Conversamos. Andamos por ladeiras sem fim. Ele, de posse de um mapa, vai sugerindo lugares. A dois passos atrás, finjo entender suas indicações. Poucas vezes percebi tão nitidamente a verdade contida na expressão: falar é fácil. Entender a fala de my friend é dificílimo. Todavia, vimos juntos umas belezas. No Chiado, à sombra do Fernando Pessoa em aço, ali sentado, lamentei não conseguir dizer: vamos seguindo, sem roteiro, no fluxo. Prometi melhorar meu inglês e disse: I’d like to live like a wave. And: see you tomorrow. So, vou melhorar meu inglês. I will.

Na longa pausa, uns versos:

Olhar à rua.
Tinta a escorrer.
Lágrima escrita.

*

Lisboa, século XXI, ano sétimo: Babel. Homens e mulheres em estado de aviso, prestes a conceberem um idioma perfeito. Vésperas de entendimento. Eis o tempo.

*

Em certo momento, uma igreja. Ouro em todas as paredes é o que ali se pode ver. Desde as Minas, desde lá onde os negros labutavam, desde o quando os reis lá mandavam buscar, desde o tempo do ouro. Eis o ouro, cá.
Pessoas de todos os tons de branco passam por ali a olhar. Sentei-me no banco, ao fundo, com vontade de gritar. Percebendo-me vendilhão no templo, recolhi-me. Fiz o sinal da cruz – em jamais imaginável gesto rebelde – e sai. Meu amigo, o do mapa, desentendeu-me.
Isso posto, pedirei a conta ao jovem mulato brasileiro.

Pergunta:
Será eterna a escravidão?

14 de setembro

Nos jardins da Biblioteca Nacional, no alto da escadaria da Fonte Luminosa, nas ruas onde turistas poucos andam – ando. Sento-me a ouvir um imigrante a cantar: “o tempo não pára”.
Por haver tanta luz; por andarem nas ruas umas senhoras muito pequenas, com saias a cobrirem seus joelhos; por dizerem muitos e muitas vezes: fica a vontade; por não se ouvir tantas buzinas; por não se ver pessoas a correr; por pararem os carros a esperar os que atravessam pela faixa; por haver uma lista tão maior do que eu poderia escrever – estou a amar Lisboa.
Fui ao cinema ver A Casa de Alice, na abertura do 11º Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa. Diretor brasileiro, cenário: São Paulo e toda angústia do desencontro amoroso. Depois, qual português, retirei-me cedo. No bairro em que me hospedo está tudo fechado. Consigo um sanduíche e umas más notícias de um bem-sucedido empresário brasileiro. O gaúcho me diz: “eles são preguiçosos, burros e tristes”. Pá! Vamos mal, vamos muito mal – penso. Nisso não posso crer. Talvez o costume do silêncio, talvez a poesia, talvez o “quem sabe?”, ou melhor o “quem poderá saber?” , dito assim qual fosse “sabêre”, sem agudos. A ver, che, a vêre!
*
Mais se me parecem doces e calmos. Quando me dirijo a alguém, sempre tenho a impressão de retirar as pessoas de lá, de um longe íntimo. Mais se me parecem silentes – viventes em si.

15 de setembro

Li Alves & Cia, do Eça, comprado no Metro.
Com os músculos ligeiramente doídos, como bom sinal dos exercícios, acordo preguiçoso, no sábado. Sento-me no Café – grato a quem quer que tenha inventado esta maravilha da civilização – , faço-me o mais estrangeiro possível e fico a ouvir conversas. O Areeiro é bairro de gentes medianas. Todos aqui se me assemelham parentes. Serão de fato tristes? Será por isto que aqui me sinto em casa? Talvez o som desta fala – com a presença de todas as palavras, os tons baixos, graves, das vozes vindas de muito dentro...

(noite)

Há umas pessoas que nascem na Europa. Outras nascem alhures. Conta-me o documentário visto à tarde que em El Salvador nasceram Las Estrellas de La Línea: unas putanas, futebolistas, agora conhecidas por mim e outros, no cinema, numa tarde em Lisboa. História triste belíssima, ou bela tristíssima.
Porém, não adianta. Penso que o Mundo é um bom lugar para se viver. E olhe só, este parágrafo poderia ter tido por começo um “mesmo assim”, todavia nada é tão bom, se anunciado após um “mesmo assim”. E nem me venha – mente fraca – afirmar: sentado na Cafeteria Bela Ipanema, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, o Mundo haveria de parecer bom. A ela respondo – mente prestes a conhecer o Silêncio: desde o Escuro, em sussurro se dizia: viver no mundo é muito bom. Pois, nesta hora, é aprazível ver os álamos, mais do que tudo, por poder nomeá-los. E os Nomes estão em toda parte e além.

Domingo

Ontem, The Bubble, o filme. Foi em companhia de um novo amigo, francês, apaixonado pelo Brasil, que assisti à coisa maravilhosa. Faça-se o amor e não a guerra, já se dizia em horas outras e se diz agora. É, enfim, bom ver o retrato de uma guerra, e percebê-la sempre a mesma e, ladeando a dor, o amor, sempre o mesmo.
Depois do filme, o quarteto de jazz. Os lisboetas se aquietam para ouvir a música, Pedem bebidas aos sussurros. Os conversadores vão para longe do show.
Há, aqui, uma fascinante capacidade de silenciar.

*
No documentário Fora da Lei a experiência de estrangeiro. Foi mais fácil entender as legendas em inglês do que o português falado na tela, ou do que o espanhol salvadorenho de ontem.

Encontro:

Em meio ao concerto percebi: todo o antes acabou. Tenho um corpo novo, tenho um novo entendimento. A fala nova é possível, enfim.
O dia já é outro, mas estamos na Terra. Àqueles chamados meus dirijo-me, ainda ontem. Lembro-me, em vago momento, de um certo domingo em Lisboa. Andei léguas, vi milhares de gentes andado por aí. Conversei com meu amigo inglês, vi dois filmes, e com eles novamente me emocionei. Tomei umas vontades para o retorno, que é a hora depois de tudo, lá quando.

17 de setembro

A Casa Fernando Pessoa. A leitura de Mensagem. As viagens do Corpo Abstrato. O Beto: português triste. Uma ou duas outras coisas. Permanentes descobertas.

18 de setembro

De passagem: é o como me sinto no trem para Sintra. Não fosse por ser óbvio, poderia prosseguir indefinidamente na busca de entender o real sentido desta expressão.

*
Nestes dias, de passagem, encontro umas mulheres portuguesas a me explicarem uns sentidos. Portugueses são tristes, contidos, fadistas, disse-me uma. Outra me diz estarem eles assim, por temor das mudanças, por temor da miséria. O rapaz, recém chegado do Brasil, dá-me impressão de que a tristeza é de nascença, mal incurável. O homem vendedor de malas arregala os olhos ao falar do medo da invasão dos migrantes.

*
De fato não sei o propósito meu ao meditar este assunto. Senão por ser isto, um assunto, e eu os procuro. Talvez pela vontade de absorver daqui uma atmosfera, um repertório para a criação de umas personagens.
*
Nada. Ontem li Mensagem. Lá deve estar quase tudo: o nada. Andar por aí, a deitar olhares às coisas é quase nada: o tudo.
Pela manhã fui a Sintra. Além dos parques e das esculturas, lá estavam belezas outras: arroz com feijão e o encontro com Maria.

19 de setembro

Dedicarei o dia ao Tejo. Em homenagens. Hoje é calma, é chegada de bons sonhos. Meu diário tem o corpo, os músculos estão nele em movimento, os olhos inchados estão nele, e as palavras – em voz baixa e calma – estão nele. Lá vou.

*
A confusão dos objetos sobre a mesa é menor do que a confusão de idiomas na calçada. Logo será o dia de deixar Lisboa. O ter escrito tão pouco, parece-me o melhor sinal. Estive a amealhar sons, cores, ares.
Largos, travessas, escadinhas. Na conta dos lugares, acresço Lisboa, Sintra e Almada; na conta dos rios, o Tejo. Na conta dos dias aponto: esses, quentinhos, plenos de obrigadinhos.

20 de setembro

Finda o verão e finda o inverno, em diferentes continentes. Assisto à manhã no Café. Bom me parece estar aqui sentado, a esperar em calma o passar do dia. O preciso é pouco para alegria, talvez pouca. Uma janela enfeitada com flores, umas nuvens a sobrevoar a torre alta, umas visões de lonjuras são, para o olhar, o bastante. O sol vai ainda oculto. A beleza é um tanto de luz projetada nas árvores, uma árvore sobre o canteiro, uma flor amarela e os tempos. Hoje o plano são caminhos, qual amanhã e nos dias novos que vierem.

*
Praça da Alegria

Os meninos que aqui vêm a trabalhar, talvez não tenham tempo para olhar: fontes, palmeiras, construções, paredes e flores, vermelhos e morros. Vêm à busca do euro e, em permissivo trocadilho, vêm em revanche à busca do ouro outrora a levar os de aqui para lá.
Loucos de praça, pedintes, ciganos, mulheres em preto profundo: coisas a imaginar.

*
Escrevo em lugar algum, depois de caminhar do Rossio à Alfama e, desde lá, à Freguesia dos Anjos. Uma Imperial, gelada, é de precisão. Os moços com fatos pretos, gravatas e becas, deste prazer não se privam na tarde ibérica, a trinta graus.

*
Disse-me a vendedora de livros: os portugueses haverão de começar a reproduzir-se outra vez. Cá estão os brasileiros, festivos a dar gosto, contraditando os silêncios e o recolhimento. Serão eles, os tristes, a entregar-se à alegria, pensa a senhora, nascida em 1940, admiradora do companheiro Lula.

*

Chove na noite. É quando começo a deixar Lisboa, com vontades de ir a outros lugares tantos, guardados nessas colinas, às margens do rio majestoso. Levo palavras. Levo música. Levo-me.

21 de setembro, Aeroporto de Lisboa

Sempre me impressionam as bagagens. Milhares de pequenas coisas a carregar. Noutros tempos, em futuros, haveremos de ter menores fardos?
De minha parte, carrego nesta vez uma mala maior. Todavia meu pensamento veio e vai mais leve, a memória é quase etérea. Sigo: livre de rancores e premonições.

*
Madrid, a la noche

A cidade é de gentes nas ruas. Recolho-me cedo.

*
22 de setembro

Acordei e logo tomei ciência de estar em um estado monárquico. Venho ao Palácio, venho a ver monumentos e câmeras. Desde cedo me pergunto: o que levarei daqui? Uma canção, conhecida desde sempre, comparece. Vou levá-la em arranjo novo: violão, águas de fonte, línguas pronunciadas, olhares perdidos, no ócio em Madrid.

*
Todos temos nossas sacas. Estamos em uniformes. Alguns até penduram crachás. Bebemos café nos jardins do palácio. Pagamos por isso uma fortuna. E somos bons. Vamos aqui ficar sentados por mais algum tempo. Alugamos a cadeira e podemos, portanto, usufruir o momento macio. Estamos na Europa. Estamos amealhando histórias. Bebemos muita água engarrafada. Olhamos: a cruz dourada, o cavaleiro de bronze, os homens brancos.

23 de setembro. Domingo – depois de Lanochenblanco.

Ao Café, diante da Plaza Picasso, depois de ontem: Los Libros e Guernica.
Nunca antes saíra de casa ao tempo este: o da não-carência. O medo comparece às vezes dando-me notícias do passado. As necessidades são poucas, apesar de ainda ter muito a fazer para atendê-las.
*
Em Lisboa, os brasileiros; aqui, os árabes, jamaicanos, porto-riquenhos, mexicanos, moventes em tempo de migração. Verei, no cinema, uma história passada no Paquistão, escrita em inglês, dublada em espanhol.

*
Em Madri não faço contatos. Meu semblante está cerrado. Sinto.

*
Abro. Quero estar, quero ser. Estou a escrever entre uns belos árabes de Madri, entre uns feios latinos de Madri. Exilados há em todas as partes. Pergunto-me o porquê de tantos trânsitos. O que buscamos em meio ao mundo claro e sombrio?
Visto-me: personagem – sentado à mesa 11, alegre desconhecedor. Escrevo. Leio. Conta-me o senhor Pablo Caballero, aqui traduzido: “Escrever é manifestar um desesperado desejo de permanecer”. E quais caminhos, pergunto, seriam possíveis depois do não-permanecer?
À falta de sinais evidentes, concluo que os rapazes logo ali me olham, às escondidas como eu a eles.

*
Volto à casa a todo momento. Moro na casa. Vivo na casa. A casa inspira passeios transatlânticos e me chama: momento sagrado – janelas abertas às nuvens, caminhos de árvores, passagens. Perco-me no ato de não-ver, em não-ato: desato. A palavra contida salta sem som, ao brilho do bolígrafo tocando o papel grosso.
Fossem palavras últimas, as sempre últimas, seriam: sem fim. Aponto: apronto-me no bar. Quantos idiomas houver – eis a conta daqueles que não poderei entender. Todavia, intento. Uma vez estudei Esperanto. Foi por pouco e estava entre poucos. Quero crer, hoje, na desnecessidade de um idioma único, além deste o que existe e que nos reúne aqui. Ponto. Pronto.

24 de setembro

Jardim Botânico. Estações de trem percorridas para poder decidir: não ir. Caótica Ana. Lua crescente.

25 de setembro

Martes. Venta. Por dever mover os olhos, a olhar para fora e além, vejo outros olhos. Parados – olhares de estátuas – na península monumental. Moventes – olhares de homens – em algumas ruas de Madrid. Intensos – olhares meus àqueles espaços íntimos – na manhã: quando ao vento estou.
Em Lisboa vi: os circunspetos. Em Madri vejo: os abertos. Eu Lisboa estive: eu, o aberto. Em Madri sigo: eu, circunspeto.
A perceber os jogos opostos quisera melhor palavra: clara, portentosa. Nos afazeres repetidos dos passeares por aí um mundo se desesclarece. Brinco o sério, a procurar uma janela donde possa vislumbrar a cidade. E a vejo em cabelos negros, brancos, enfeitados, longos, cobertos – chapéus, capacetes, óculos, presilhas; em bolsas – mínimas, cheias, empurradas por carrinhos. Invento-a, percorrida em passos: longos, pesados, rápidos, hesitantes. No momento, ao fundo, por detrás dos veículos ruidosos, percebo a parede em branco e preto. Diante dela uma mulher viva veste uma não-mulher de plástico, pendurando-lhe ao braço rígido uma bolsa negra. Ora as duas estão expostas. Observo-as com capricho, quando uma mulher viva pára, dando-me a impressão de pensar sobre a possibilidade de possuir a roupa lilás.
Estatelado, de dentro desta outra vitrine percebo: nada disso precisaria ser dito. Na mesma medida em que nada disso precisaria acontecer, senão por estarmos no mundo: ouvindo canção de Tom Jobim, cantada por alguém com um sotaque cuja origem não sou capaz de definir, almas em trânsito, em corpos em trânsito, em meio à tarde, na Bravo Murilo, Estrecho, Madri – sem saber compreender, sem perceber verdade qualquer.
Dá-me otro, digo ao espanhol, em portunhol estreito. Chega-me, em instante, a cerveja. O menino mexicano lá está, no espremer laranjas sem fim, ritmando a tarde. Ouço os velhos conversando em seu idioma íntimo. Deixo-me tomar pelo sabor, pelo lúpulo ácido; deixo-me acreditar na importância de “sair por aí e olhar as coisas”, como descreveria o bem viajar o senhor Li Yantang.
Recapitulo. Hoje fui ao Museo Del Prado, qual outros milhares, a ver os guardados de séculos dos reis de Espanha. Andei por ali, atento aos olhos desenhados, com medo dos terrores tantos impostos por homens a homens ali tão longamente descritos, no desconforto produzido por ver tantas imagens fora de seu tempo e de seu lugar. Houve momento de querer gritar: calem-se, façamos um silêncio grande, voltemos às nossas casas, como voltaram à Casa os desenhadores e os desenhados.
Ocorre-me explicar: os museus quase sempre em mim provocam desgosto. Insisto em visitá-los, talvez para vê-los existindo, para saber os dias em movimento, para perceber pessoas no ócio a ver o por outros homens feito.
A sul-americana chega. Deixa o menino no canto, porém desce aos baños lançando-lhe um olhar amoroso. O mexicano agora corta os tomates. Na vitrine já há um não-homem de plástico, vestido de listras e jeans. O registro é um esforço necessário para manter a vida em mim. Agora, bem agora, vou contar minhas moedas. Tenho muitas. Cá estou entre os descobridores, os inventores da América. Existo: entre eles. Desinvento o planeta, peço outra cerveja, deixo gorjetas, mastigo batatas, rememoro um antigo sonho: o viver para sempre. Em Madri embriago-me de Madri. Sorvo-me às gotas. Troco olhares lascivos. Ouço músicas antes ouvidas no quarto de meu filho, no interior do São Braz. Fumo um cigarro saído de uma caixa azul. Fumar puede matar – é o que na caixa está escrito. Vivir puede matar – lo digo yo. A luz indica o entardecer. Na vitrine os não-seres de plástico agora brilham. Em breve estarei em meu quarto. Farei exercícios. Por enquanto, insistem os amigos do Italcaffé no fazer-me ouvir música brasileira, em versão eletrônica, belíssima, sotaqueada. Sirenes, ônibus vermelhos, sons de vozes em idiomas desconhecidos – meu caderno deseja registrar. Porém, é hora: a hora - deslizar.

26 de outubro

Primeiro: fiz o que precisava ser feito. Agora: faço o que preciso fazer. E, não esquecer: preparar a comida, passear de bicicleta, reviver todas as manhãs.
*
Hoje: Toledo, trens em alta velocidade, música no rádio e gotas de Sulphur para combater o mal-estar. As mulheres que me serviram o almoço estavam em péssimo humor.
Hoje: cansaço. Falta de deslumbramentos, horror às imagens dolorosas da cristandade, desejo de casa – ao som de Debussy.
Por momentos tenho medo. Por momentos sinto saudades de carícias. Cogito correr ao aeroporto e gritar: socorro, e.t., minha casa! Sorrio, decido ouvir o Espaço de Jazz da RCE – buenas noches, hoy Charlie Parker – dice el hombre.
De qualquer sorte, mañana es jueves, o último dia do estar-aqui. O frio comparece. A saudade restará, intacta, como tantas outras vezes. Mais vale o tempo fabricado neste hemisfério, bem acima do meu próprio.
A não esquecer: qué tan lejos? – o filme.

27 de setembro

Buenos dias. Em uma praça confusa, para não esquecer: jardins valem mais do que cidades; as ruas são todas iguais; os carros, os coches, os autos, os sapatos de borracha e as palavras estão em movimento. O céu é no mundo. Nuvens viajam livres, desconhecendo as nações. E não esquecer, também, o que de etéreo há sobre a terra. Tampouco dos quilômetros percorridos no subsolo, dentro do trem azul.
Às estátuas – no aparente, sólidas – deixo minhas homenagens. Seu silêncio bem se parece com o meu. Por igual ocupamos os bosques, fincados momentaneamente entre os outros, os que se movem.
Eis a tarde madrilenha, no Retiro, ao vento outonal, ouvindo voz ao longe, em quase cântico. Não saberei, das coisas daqui, nada senão folhas em dourando, céu em azulando, nuvens em flutuando, castanhas em caindo – à siesta.

*
Pelas ruas todos procuramos o amor. Ao sol gostaríamos de com ele encontrar. Frases mal escritas, vozes gigantes, pássaros. Pelo Metro até o Canal, por lembrar que ali existe um cinema, onde se pode por alguns momentos descansar.
(Vejo: A cidade de Silvia).

*
Dias e noches en blanco.
Hoje entendi o sentido de algumas palavras ditas aqui. Vi o silêncio descrito nos momentos do filme a que assisti. Vi crianças pelas ruas e, pela segunda vez, uma senhora tomando uma bebida forte, em pé no balcão do bar.
Vou à casa daqui em nova longa caminhada, aprontar as malas para prosseguir: amanhã – em sonho, o Brasil.

28 de outubro, despedidas

Eu – o que faz as malas – encontra-se com aquele – o que observa. Deixaremos a cidade, com a leve sensação de que nada aconteceu. Ontem, o filme: La ciudad de Sylphia. Estranho retrato, com poucas palavras, da situação vivida por aqui – in the earth.
Hoje o vôo: o espanto das travessias atlânticas.

*
Barajas – terminal um. Generosos ainda com os fumadores os espanhóis oferecem uma grande vista ao céu aberto e ao solo tomado pelas aeronaves. Estranhos e conhecidos caminhos.
Quisera fazer agora uma qualquer, desde que parecesse profunda, reflexão. Porém creio ter/estar aprendido/aprendendo a olhar. Donde o falar perde forças. A memória, entretanto, tem lá suas formas de autoconstrução. Talvez como produto exista uma grande tela, à moda dos espanhóis surrealistas.
O certo é: neste instante estou a olhar as aeronaves paradas no chão, recolhendo aqueles que vão percorrer os mares e os ares.

29 de setembro, Rio de Janeiro

Laranjeiras, na casa dos meninos – ainda em estado de bagagem. Em leve anseio, desembarcado, mas ainda longe de casa. Meu caderno resta por testemunha dos momentos por viver. Não, não é por sentir de leve a dor nos ossos, nem por haver esta dor fina na cabeça ainda cheia de pressão, que vejo a viagem no avesso. Sair por aí a percorrer lugares traz isto mesmo: um acúmulo, um resíduo de histórias.
Os vôos – experiências últimas – dão a exata noção do absurdo: trânsitos, multidões em trânsito, ausência de motivos. Prossigo no ritmo do querer-ir-logo-a-qualquer-lugar e percorro as palavras deste caderno, conhecendo-me. Julgo menos. Vivo com mais gosto. É melhor.

*

Em mundos fantásticos vive-se. Neles há os afazeres: fazeres de frases e cânticos.
Hoje, pelas ruas do Rio, tomo ciência do tamanho das cidades, do tamanho das ruas, do tamanho. A cabeça dói um pouco, o pensamento vai apressado, apertado, querendo dominar, em dias de poucos músculos.
Há pouco tentei um cochilo, mas não há qualquer possibilidade de desligar a mente. Trabalho em futuros, em idas e voltas. Ocupo-me com o vazio que resta desses movimentos todos, expresso aqui na palavra solta e desencontrada. Vou fazer e desfazer a mala mais umas vezes, olhar os tesouros poucos, os perdidos e os achados.

30 de setembro, Curitiba

Meu jovem novo-velho-amigo, ontem, na madrugada depois de um vôo tormentoso, disse tudo: ...então morri e não foi o fim do mundo.

*

Em tendo o tudo sido dito, em estando de volta à pequena e graciosa cidade onde me cabe viver, repouso tranqüilo. Abatido, é certo, pelo cansaço de ver e de precisar de palavras para entender o visto.
Em algum desses dias, registrei em sussurro a experiência maior. Volto a ela. É assim:
Em Lisboa, depois de assistir a um filme importante, depois de ouvir música inspirada, percebi que a travessia do oceano servia para a produção de um conhecimento, para a abertura de um espelho. Nele, com meus ossos, músculos, órgãos, via-me: livre. O passado é um quadro, um prólogo. O futuro é uma brisa em direção à qual caminho com os braços levemente abertos, em dança suave. O presente é dádiva, presente.
Sentei-me à máquina. Li os recados, via a programação dos filmes da semana. Preparei uma refeição. Voltei para A Casa.
Quando é momento de seguir: escolho as pernas, aparo o olhar, aponto o indicador e grito: seguir! E saio em viagem aos dias do tempo comum.

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