terça-feira, janeiro 20, 2009

Intento: escrever memória. Há, entretanto, o presente: presente. Ouço música deixada ao futuro – cantada nos anos setenta do século outro, em um quando estive experimentando estar jovem – depositada na máquina então inimaginável, esta aqui ao alcance dos meus dedos de hoje. Com o coração escuto: só uma palavra me devora, aquela que o meu coração não diz. Intento mostrá-la aos meus filhos. Isto no futuro, no próximo encontro, no depois de amanhã, na quinta, logo, logo, no quase agora. Vou gostar de lhes dizer uma ou outra palavra enquanto estivermos ouvindo as canções. Talvez comece com um foi numa noite fria e prossiga apontando aqui e ali travessuras de amor, entristecimentos da noite em que conheci o disco e vi uma minha não-mais-namorada tocar a mão do seu então-namorado-ainda-hoje-marido, e concluirei o trecho de memória com um grande sei lá deles e, neste ponto, baixarei o tom anunciando o que ficou: eu canto, porque o instante existe e a minha vida está completa... Ai! E a canção seguirá e o Fagner, citando a Cecília, cantará: um dia eu sei que estarei mudo...mais nada.
E agora? Lido o parágrafo, tudo ficou mais obscuro do que naquele antes, no tempo ausente – lá no passado quando o disco rodava em vitrola de amigo, ou lá no futuro quando ouviremos o registro eletrônico, bendito fruto, colhido na rede, encontrado em baú de pirata.
Aí o disco se encerra, em peça sem versos, chamada: Quem viver chorará. Aciono a repetição. Na sequência, ao que tudo indica, salvarei o arquivo e, em tendo coragem, com a ponta do dedo dirigirei a seta ao invisível alvo.

quinta-feira, janeiro 15, 2009

Cerco. Cerco. Cerco-me.
Tudo é luxo neste verão: tempestades, música, beberagens de líquidos – magias. O Quinteto Violado conduz o coro – no passado. Um presente na noite, na quinta. Mesmo as dores nos olhos exaustos de imagens da guerra, mesmo a ignorância completa, mesmo esses e os outros muitos fatos são incapazes de consumir a alegria latente – latejante – filha da luz, tamanha!
Juntas, ou quase, as coxas ousam insinuar um triângulo. As idéias ousam brotar entre estas pernas minhas encostadas dolorosamente ao chão. Como seria viver sem o dever de ordenar aos ombros: abram-se, livrem-se, soltem-se...? Uma valsa rega a imaginação do homem encolhido, encolhido em si, dobrado sobre o chão da casa, aquela pregada sobre a outra e sobre a outra e sobre a outra, elas todas sobre o chão preso ao centro da terra – ao fogo! Mu Carvalho está ao piano. A brisa denuncia a impossibilidade de outra tempestade.
Longa é a noite. E ela é só isto: escuro – o Sol a brilhar na Palestina onde há gritos – e claro – as lâmpadas da casa ainda acesas em homenagem à música.

terça-feira, janeiro 13, 2009

Nota. Imperativo é o tom.
Estou a ouvir peças para cravo – Antonio Vivaldi – e a perceber coisas. É fim-do-dia e sou tocado pela música que percorreu séculos, por escrita, e chega aos meus ouvidos, nesta quase-hora, saindo de uma máquina, depois de ser lida pelos olhos e reinventada pelos dedos de um certo Enrico Baiano em contato com um cravo, gravada por sei lá quem e guardada dentro de outras e outras máquinas.
Nota.
Depois escuto Théo de Barros. Este escreveu Disparada, canção que eu cantarolava na infância, porém seu nome me era estranho até hoje. Conhecedor de orquestras, o senhor Théo. Conhecedor de Vivaldi, decerto. Chego a ouvir esta voz, também pela intervenção de milhares de máquinas, instrumentos e ondas. Espanto é o nome de uma canção do disco. Canção conhecida no tempo em que me conheci – aquele do fim da infância, aquele do começo da ignorância real, aquela a me acompanhar até agora e, é quase certo, ao além.
Nota.
O Império prepara-se para receber o novo grande homem. Será na próxima semana. A guerra no Lá prossegue, mas agora as vítimas se acumulam somente às dezenas, então as notícias vão deixando as primeiras linhas. Nestas só cabem mortos quando aos milhares forem recolhidos ou se faltarem os sacos para guardá-los.
Noto.
As canções embalam, desde... Não conheço música vinda da Palestina, ou do Vietnã, ou do Congo, se ainda houver Congo. Isto posto, ouvirei uma canção do Egberto Gismonti recontada por Esperanza Spalding e, apesar, vou me recolher ao território dos sonhos.
Nota.
Nota. Nota. Nota. Nota. Nota. Nota. Nota.

sábado, janeiro 10, 2009

Más notícias. Manhã. Foguetes disparados. Maus foguetes: barulho e fogo não-brando, não-útil. Não. Boa-nova: Consiglia Lattore canta o Tempo da Delicadeza, conta males-de-amores, sempre tão bons e, logo cedo, os sons das não-bombas ocupam a sala. O dia em curso – velocidade de cruzeiro.
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Na tarde – 700 mortos em Gaza – uma vertigem. A ajuda humanitária não pode chegar à Palestina. Os diplomatas reunidos em lugares... Faço um café forte, brincando com as moças, ensinando: coloca-se muito pó, até quando se tem a impressão de ter passado da conta e, então, acrescenta-se mais um pouquinho. Um tanto do extrato do vegetal tão belo – verdes e flores – com água de qualquer fonte e temos o suco quente, sem o qual não se pode viver. O motorista a levar alimentos morreu. Façamos então uma revisão do estado de nossas vidas amorosas. Olha ali aquele menino, invista – disse. Está bom o café? Invista. O amor é possível. E se não for possível o amor, aquele, pode ser só sexo. Sexo, sexo, sexo – mesmo quando é ruim é bom! Ah, ah, ah, rá, rá, rá, ai, ai, ai, psiu... Amanhã é sábado. Amanhã o sabá.
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Sábado. Sabá. Dia do senhor de alguns... Dia de poderes... Poder de cinema, poder de cerveja, poder de fechar barreiras, de fechar portas, dia de não entrar, dia de não poder deixar os alimentos, não antes da retirada dos depositados ali, à porta, parados, pois estamos no sábado... o sabá...
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No cinema houve um momento. E há este outro. Nele, ouvir Tom Zé a estudar a bossa. Ora: O Céu Desabou. É a música. Ela diz. Nas palavras está escrito. Nos acordes está inscrito: o céu desabou. Ah é! Esqueci. Foi no cinema. No momento foi. Um pensamento: o medo de morrer pode matar. Depois outro. Esqueci as palavras certas. A música é excelente. Ah! Insensatez. Quando a morte começou a me matar foi no escuro. Aí eu disse: deixa disto, me larga, me esquece, vou viver até o fim. E fui ao cinema, comprei cigarros em caixa vermelha, com um filtro marrom chamado vermelho, o filme era imenso, a dor era grande lá na história, e a espera é grande quando nada se espera. Vou mudar alguns livros de lugar agora mesmo. Pensei, decidi, fiz. Tudo – uma porção de movimentos absurdos – enquanto o Tom Zé continua cantando, enquando estou a procurar maneira de contar o quanto quero saber por que insistimos em guerrear as guerras. O Ney Matogrosso canta: eu sou o homem de Neanderthal...nasci de um povo primitivo. As guitarras existem. Quero encontrar nas palavras o jeito, ou o trejeito, ou o que seja! Por deuses, é sábado! Sábado! Sabá! As sentinelas nos portões, nas margens das cidades sitiadas, estão em alerta. Haverá novos combates novos combates novos combates novas granadas – canta-se. Entorpecido: estou, sou, vou. O chão da casa está sujo. Muito sujo. Lembrei-me: Bubble, o filme. Entendi: há o oriente médio, isto porque há também o oriente próximo e outro, extremo. Que nome darão a essa guerra? Vontade de colorir. Vontade de vermelho para contar o sangue. Vontade de verde para contar o verde. Vontade amarela para imaginar um oriente amarelo. Vontade de dormir no leito de um rio qualquer, tripulando embarcação sem âncora. Nisso, no disco, aos apitos de um barco segue-se uma história da chegada de um canhão a um porto. Entendo: sincronias há. Vamos no mundo juntos, porém alheios ao mundo, porém alheios ao fato de estarmos juntos. Melhor encerrar – penso. Vou prosseguir – decido. Tremo no sabá. Direi: se há guerras, se há guerras, ainda, ainda, ainda, precisamos rimar, cantar, escrever e juntar, quiçá com rinha rimar ladainha, quiçá quicar – palavra que existe e, como qualquer outra diz nada e diz: coisas demais.

terça-feira, janeiro 06, 2009

No antes – do ler as notícias – dou notícias: a tarde entardece, um piano foi tocado no tempo e no tempo-agora emoldura o por-de-sol emoldurado pelas pedras da cidade, aquelas logo ali à janela
Na casa:



No jornal:



Na janela:

Crepúsculo. E a chuva... E o frio... E a memória... Dá medo! Viver é perigoso. Não tem fim senão quando acaba. E pessoas passeiam... Dentro das casas pessoas escrevem... Palavras escapam ao som de tambores...

No jornal:
Pelo menos 60 pessoas, em sua maioria civis, morreram por fogo...

Na janela:
O sol...


Na casa:
Dulce Nunes canta Canção do Dia de Sempre, de Mário de Quintana: “nada jamais continua, tudo vai recomeçar...”

segunda-feira, janeiro 05, 2009

Venho de uma casa lá. Aporto na casa cá. Marco na página estes pontos, qual pudesse adornar os fatos. Copio um disco desconhecido. Recebo os amigos para café, fumaça e para ouvir a moça – baixo, voz, beleza. Faltam sacos para corpos em Gaza. Conto vitórias no jogo do bicho, olhando de soslaio para os jovens apaixonados que sofrem. Sugiro uma outra canção. Digo não, digo hoje fico. Mudo de lugar a geladeira nova. Mudo de lugar a geladeira velha. Faltam sacos para corpos em Gaza. Olho para a rua. Olho para o crepúsculo prateado. Olho. Olho. Olho. Agasalho o tronco e tiro as meias. Ponho no forno um pedaço de pizza. Um pedaço de ontem ponho no fogo. Faltam sacos para corpos em Gaza. Reclamo ao telefone. Perdoo quem não veio. Digo. Digo. Deixo para lá o atraso. Acho que não devo. Sempre se atrasam comigo. Faltam sacos para corpos em Gaza. Penso ligar a câmera e, de frente para o espelho, cantar. Quero observar os movimentos do ar nas costas, nas costas, nas fronteiras, limites. Estou na posse de minhas costas e de meu espelho. Faltam sacos para corpos em Gaza. Desisto de filmar qualquer coisa. Desisto de não me queixar de uma dor pequena no pescoço. Não desisto de manter a máquina em funcionamento. Não posso. Faltam corpos. Outros corpos, quero dizer. Faltam aqui. Fumo um cigarro. Outro cigarro. Mais um. Uma mulher toca um violão. Os vizinhos estão em festa. Mas não há problema. Entre nós estão muito bem estabelecidas as fronteiras. Faltam sacos. Uma dose. Uma só. Tenho já as calças brancas, as meias brancas, a camisa – o peito é vermelho. Corpos em Gaza. Está frio. Muito frio. Há sacos em Gaza. Há músicos com corpos. A camisa vermelha, sob a blusa branca, sobre o peito apertado – calor. Faltam sacos para corpos em Gaza. Faltam corpos para corpos em Gaza. Faltam corpos em Gaza. Está frio neste janeiro do mundo. É janeiro em Gaza. O encanador não veio. A geladeira velha agora está ao lado da nova. Sobram geladeiras em Gaza. Está frio. Um gole. Faltam sacos para corpos em Gaza. Dois dias longe dos jornais. Dois dias dentro da música. Duas músicas dentro de mim. Música dentro do saco. Corpo dentro do saco. A vida dentro do saco. Faltam sacos para corpos em Gaza. A música está aqui na casa. As imagens desencontradas dos tantos objetos encontrados, moradores da casa, guardados aqui, no corpo. Faltam sacos para corpos em Gaza. E lençóis...

sábado, janeiro 03, 2009

No terceiro dia consultamos um oráculo. Lemos: A Preponderância do Grande. Foi dito: é oportuno ter para onde ir. Há equilíbrio precário. O centro é denso, as extremidades são suaves.
O centro é o desejo. Ora desejo o claro. Mesmo em sendo noite, à busca das luzes irei. Seguindo. Seguindo. Circulando. O mundo é motivo. Colho: flores, nuvens, mais flores, uma canção entoada às margens de um piano. Recolho entre milhões de palavras estas algumas. Desejo adorno, adereço. Já é quarto o dia – diz o relógio. Há fome. Há pão – trigo e água e fogo e tempo. Ah...
Por um momento cogito encerrar, recolher, guardar. Noutro, percebo a fala cumprindo seu dever: dizer mesmo assim.